O direito do médico de se recusar a praticar ato que viola valores próprios pode ser alegado por hospitais?
- Pedro Enrique Alves

- 20 de mar. de 2024
- 9 min de leitura
Atualizado: 19 de out.
A divulgação de caso em que hospital privado em São Paulo se recusou a realizar procedimento contraceptivo porque contrariava os valores da instituição gerou debates na sociedade justamente porque alcança garantias constitucionais e éticas dos pacientes, profissionais e instituições de saúde envolvidos.

Entenda o caso
Recentemente, uma paciente publicou em suas redes sociais que buscou a unidade da Pompeia do Hospital São Camilo (HSC), na cidade de São Paulo, para a colocação de dispositivo intrauterino (DIU), método contraceptivo de longo prazo e reversível, mas teve o procedimento negado pela instituição, que alegou não executar o procedimento por diretrizes religiosas.

O HSC pronunciou-se, confirmou não realizar procedimentos contraceptivos em mulheres e homens, salvo se envolver risco à manutenção da vida do paciente, justamente por ser instituição confessional à igreja católica – que condena a contracepção artificial.
O confessionismo é doutrina que defende uma religião com formulação explícita de princípios.
Para a igreja católica, a relação dos cristãos com o ato sexual seria um voto matrimonial a partir do ensinamento de que Deus teria criado o sexo e revelado que sua finalidade é a procriação e a união entre os esposos, um reflexo da fecundidade de amor da Santíssima Trindade, como uma expressão do amor de Deus por intermédio do corpo.
A partir dessa compreensão, a utilização de métodos contraceptivos artificiais – pílula anticoncepcional, DIU, preservativos e outros – separaria o ato conjugal do ato de transmitir a vida, por condenar a prática de ato sexual que não tem por finalidade gerar uma nova vida.
Fora isso, essa visão religiosa tradicional entende que a contracepção resultaria em efeitos na sociedade e relacionamentos, como infidelidade conjugal, queda de moralidade pública, a perda do respeito pela mulher e prejudicaria a intimidade dos esposos.
O dogma, no entanto, entende ser moralmente lício o uso de métodos contraceptivos naturais apenas.
A situação ganhou notoriedade por reacender debates na sociedade e entre especialistas sobre o acesso aos métodos contraceptivos pelo sistema de saúde e por repercutir sobre garantias constitucionais, legais e éticas, além de acentuar indevidas exclusões sociais.
Atualmente, ação popular sobre o assunto tramita na justiça paulista, e o Ministério Público do Estado de São Paulo instaurou inquérito para apurar se há violação à legislação pelo HSC.
Para dar solução ao caso, é preciso que, antes, seja feita breve passagem por conjunto de normas que possibilite a ponderação sobre as garantias e direitos envolvidas nesse contexto.
Direitos Fundamentais: saúde, liberdade de crença e livre iniciativa
A Constituição Federal de 1988 elenca princípios fundamentais que dão razão à existência e manutenção do Estado brasileiro. Dentre eles, a dignidade da pessoa humana – que contempla o direito à vida, à saúde e à liberdade de crença religiosa – e a livre iniciativa.
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
Com isso, tem-se que o Estado deve atuar para garantir especial proteção à saúde, à liberdade religiosa e ao exercício de atividade econômica.
O sistema de saúde é universal
Os arts. 196 a 200 da CF, estabelecem que o acesso às ações e serviços de saúde o acesso às de forma universal, equânime e integral a todos que estejam no território nacional.
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
§ 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.
Isso quer dizer que a saúde no Brasil é ofertada de forma integrada, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), aberto a todos, considerando a desigualdade dos desiguais e com o objetivo de proporcionar o bem-estar social de cada indivíduo – conceito amplo de saúde.
O SUS é composto pela saúde pública, compreendida como os serviços ofertados pelo próprio Estado; complementar, a atuação privada que participa da assistência pública; e suplementar, que são as atividades desenvolvidas planos de saúde.
É possível perceber, então, que o sistema é um só, voltado à garantia constitucional de saúde, submetendo todos que dele participam à fiscalização pelo poder público, de modo a garantir o cumprimento do Direito Sanitário, que tutela a saúde das pessoas.
O direito ao planejamento familiar
A CF também assegura a todo cidadão o exercício de decidir livremente sobre planejamento familiar, como integrante da dignidade da pessoa humana.
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(...)
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
É, portanto, o direito de tomar decisões informadas sobre o futuro familiar, especificamente no contexto deste artigo, em relação à saúde fecundativa, ao uso de métodos contraceptivos.
A fim de viabilizar o exercício desse direito, a Lei 9.263, de 12 de janeiro de 1996 estabelece que o SUS deve oferecer, dentre outros serviços, assistência à contracepção.
Art. 3º O planejamento familiar é parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde.
Parágrafo único - As instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde, em todos os seus níveis, na prestação das ações previstas no caput, obrigam-se a garantir, em toda a sua rede de serviços, no que respeita a atenção à mulher, ao homem ou ao casal, programa de atenção integral à saúde, em todos os seus ciclos vitais, que inclua, como atividades básicas, entre outras:
I - a assistência à concepção e contracepção;
E mais. Também é assegurado, no âmbito dos planos de saúde, nos termos da Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, o custeio, em proveito de seus usuários, de procedimentos contraceptivos, dentre eles, a colocação de DIU.
Art. 35-C. É obrigatória a cobertura do atendimento nos casos:
(...)
III - de planejamento familiar.
Aqui, torna possível compreender que, seja no âmbito da rede pública ou privada de saúde, por estarem sujeitas às normas já referidas, todo cidadão, independentemente de gênero, tem o direito submeter-se a procedimento contraceptivo.
O Código de Ética Médica
Logo no início do Código de Ética Médica (CEM), Resolução CFM 2.217, de 27 de setembro de 2018, são expostos 26 princípios que obrigam ações e determinam condutas a serem adotas pelo médico no exercício de sua profissão.
Destacam-se, para a análise do caso, os princípios de que a atividade profissional será exercida com o uso da ciência em benefício do paciente, e garantindo ao médico a autonomia e a objeção de consciência em sua atuação.
Capítulo I – Princípios Fundamentais
(...)
V - Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente e da sociedade.
(...)
VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.
Esses princípios atuam para garantir a liberdade profissional, inclusive, possibilita ao médico exercer sua profissão de acordo com seus valores pessoais, sejam de origem religiosa, filosófica, ou outro que influencie sua formação individual, sobrepondo-se à profissional.
A liberdade profissional, no entanto, deve observar a saúde do paciente primeiro. Mas não
poderá ser limitada por orientação da instituição de saúde a qual está vinculado.
Capítulo I – Princípios Fundamentais
XVI - Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do diagnóstico e da execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente.
Capítulo VII – RELAÇÃO ENTRE MÉDICOS
É vedado ao médico:
Art. 47 Usar de sua posição hierárquica para impedir, por motivo de crença religiosa, convicção filosófica, política, interesse econômico ou qualquer outro que não técnico-científico ou ético, que as instalações e os demais recursos da instituição sob sua direção sejam utilizados por outros médicos no exercício da profissão, particularmente se forem os únicos existentes no local.
Capítulo III – RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL
É vedado ao médico:
Art. 20 Permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens, do seu empregador ou superior hierárquico ou do financiador público ou privado da assistência à saúde, interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente ou da sociedade.
Portanto, essas diretrizes informam que a atividade médica considera a formação do profissional enquanto ser humano, desde que a vida e saúde do paciente assistido sejam preservados, e sem que regramento estatutário diminua a liberdade e independência médica.
Conclusão: pode-se dizer que a conduta da instituição está dentro da legalidade?
Ainda que outros atos normativos, como o Código de Defesa do Consumidor, a Resolução CFM n. 2.232, de 17 de julho de 2019, que dispõe sobre a objeção de consciência, e o próprio contrato entre o hospital e o plano de saúde ou consumidora, também possam influenciar na análise da questão destacada, a exposição feita já é suficiente para possibilitar respondê-la.
Em um primeiro momento, afirmar que a negativa em colocar o DIU está em conformidade com a lei até tem suas razões, afinal, a autonomia médica assegura o direito de o profissional se recusar a executar ato que, embora permitido por lei, contrarie seus valores, os ditames de sua consciência.
No entanto, a objeção de consciência prevista na lei refere-se somente ao profissional da medicina, sem alcançar as instituições de saúde também.
Logo, a análise da situação revela que a norma institucional que orienta a condução de seus subordinados e prestadores de serviços confronta o direito à saúde do paciente.
As garantias de liberdades no exercício de atividade econômica e na orientação religiosa, no caso, confrontam a de saúde dos pacientes - que tem assegurado o uso da ciência a seu favor - e a autonomia do médico não confessional, impondo a ele que renuncie à liberdade profissional dentro daquela organização.
A ponderação das garantias entre si, então, devem solucionar esse conflito. Certamente, as liberdades religiosa e econômica não podem superar as que tutelam direitos da saúde e sociais do cidadão – que também sujeitam as instituições privadas de saúde, tanto nos atendimentos particulares quanto de plano de saúde.
Portanto, concluo que a conduta de instruir seus prestadores a não realizem procedimentos anticonceptivos, sobre o fundamento de objeção de consciência, por ser instituição confessional, foi incorreta, pois deixou de considerar outras garantias constitucionais que se sobrepõem ao direito que poderia respaldar a recusa. Inclusive, a orientação institucional de recusa a atendimentos em outras hipóteses, como a pessoas transgéneros ou de aborto legal, poderiam configurar, além da fundamentação exposta até aqui, ato discriminatório, também repelido pela CF.
Pedro Enrique Alves, advogado especializado em Direito Médico
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1 https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2024/01/24/hospital-de-sao-paulo-se-recusa-a-colocar-diu-em-paciente-por-questoes-religiosas.htm, acesso às 11h30min de 17/2/2024.
2 https://padrepauloricardo.org/blog/por-que-a-igreja-catolica-e-contra-os-metodos-anticoncepcionais, acesso às 12h15min de 17/2/2024.
https://formacao.cancaonova.com/bioetica/metodo-contraceptivo/qual-e-a-posicao-da-igreja-em-relacao-ao-anticoncepcional/, acesso às 12h26min de 17/2/2024.
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2016/02/20/interna-brasil,518646/nao-fere-regras-da-igreja-diz-especialistas-sobre-declaracao-do-pap.shtml, acesso às 12h32min de 17/2/2024.
3 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
4 Disponível em: Lei 9.263, de 12 de janeiro de 1996.
5 Disponível em: Lei 9.656, de 3 de junho de 1998.
6 Disponível em: Resolução CFM 2.217, de 27 de setembro de 2018.
Outras fontes de pesquisa:
Artigo publicado na Folha de São Paulo em 3/2/2024: Hospitais podem negar procedimentos contraceptivos em razão de valores religiosos?, de autoria de Debora Diniz, professora de Direito da UnB, disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/02/hospitais-podem-negar-procedimentos-contraceptivos-em-razao-de-valores-religiosos-nao.shtml#:~:text=Que%20os%20hospitais%20n%C3%A3o%20podem,b%C3%A1sicos%20e%20essenciais%20%C3%A0%20sa%C3%BAde.
Artigo publicado no portal Conjur em 24/1/2024: Hospital não tem direito a recusar procedimento por objeção de consciência, disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jan-24/hospital-nao-tem-direito-a-recusar-procedimento-por-objecao-de-consciencia/
Artigo publicado no portal O Tempo em 23/1/2024: Hospital se recusa a colocar DIU em paciente e alega questões religiosas, disponível em: https://www.otempo.com.br/brasil/hospital-se-recusa-a-colocar-diu-em-paciente-e-alega-questoes-religiosas-1.3317371
Publicação da paciente na rede social X, disponível em:
Ação Popular (autos do processo n. 1004717-39.2024.8.26.0053) em trâmite na 16ª Vara da Fazenda Pública do Estado de São Paulo.



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